O Palhaço e o Publico

Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando, falei muitas vezes como um palhaço mas jamais duvidei da sinceridade da platéia que sorria.

Charles Chaplin

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Jardim do Éden Revistado

Instinto Coletivo

Roque de Barros Laraia
Universidade de Brasília



RESUMO:  Análise do mito de Lilith, primeira esposa de Adão, segundo a tradição judaica, que foi expurgada do texto, hoje conhecido, pela censura dos editores bíblicos que procuram adequar o livro sagrado aos valores e padrões morais de suas épocas. O Autor mostra que esses cortes não foram suficientes para apagar totalmente a figura de Lilith de tradição oral e, muito menos, de alguns textos rabínicos. No decorrer deste mito ica claro que, ao consumir o fruto proibido, Adão adquiriu o conhecimento do bem e do mal não apenas o da sexualidade. Mas, o mais importante é o fato que Lilith representa a primeira reação feminina ao domínio masculino. 


Claude Lévi-Strauss cautelosamente evitou a realização de uma análise estruturalista do Gênesis, sob a alegação de que "a mitologia d Velho Testamento foi distorcida pelas operações intelectuais dos editores bíblicos" (Leach, 1983:74), além do fato de considerar o contexto etnográfico como "quase inteiramente ausente" nos referidos textos. Esta argumentação foi refutada por Leach em seu brilhante artigo "A Legitimidade de Salomão" (Id., ibid.), no qual demonstrou a existência na Bíblia de evidências etnográficas passíveis de serem analisadas pelo método antropológico, além da consideração que a seqüência cronológica que foi estabelecida pelos "editores" tem, "por sim mesma, um significado estrutural".

Concordamos com Leach sobre a disponibilidade do material bíblico para a análise antropológica e também que os antropólogos, que utilizam os mitos de outras religiões, devem abandonar  seu "melindre extraordinário com a análise do Cristianismo e do Judaísmo que são religiões nas quais eles próprios, ou seus amigos próximos, estão profundamente envolvidos." (:136). Retomamos, portanto, neste trabalho, o texto bíblico do Gênesis, buscando demostrar que os editores bíblicos", através do tempo, procuram mediante uma atitude censorial uma espécie de "pasteurização" do discurso original, numa tentativa de adequá-lo aos valores morais e culturais de suas respectivas épocas. Contudo, os trechos que foram objetos de cortes não tiveram o seu registro totalmente apagado, continuam disponíveis em outros textos, principalmente os da religião Judaica. A legitimidade etnográfica deste material pode ser invocada, pois o Cristianismo é uma religião derivada do Judaísmo, partilhando com o mesmo discurso mítico contido no Velho Testamento. 

Ao retomarmos a análise da história que têm como cenário o Jardim do Éden seguimos, a trilha aberta por Frazer, Freud e principalmente o próprio Leach (1970), mas, ao contrário destes autores, pretendemos utilizar os trechos que foram extirpados na sucessiva edições do discurso mítico. 

No sétimo dia da Criação, Deus criou o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou: macho e fêmea." Gênesis, 1,27). Tal afirmação categórica é uma negação da versão mais difundida: a de que o homem foi criado antes da mulher. Neste ponto, existem interpretações diferentes. A primeira é a de que Adão seria um ser andrógino  (macho e fêmea) e que a separação de Eva representaria a cisão da criatura original andrógina em duas (Unterman, 1992:25). A androginia de Adão é explicada em alguns textos rabínicos, como no Sepher Ha-Zohar, que contêm a afirmação de rabi Abba: "O primeiro Homem era macho e fêmea ao mesmo tempo pois a escritura diz: E Elohim disse: façamos o homem se assemelhasse a Deus que foi criado macho e fêmea ao mesmo tempo".

Existe, contudo uma outra interpretação, que nos parece mais fascinante, a de que, a exemplo do que foi feito com os animais, Deus teria criado uma casal: Adão e uma mulher que antecedeu a Eva. Esta mulher primordial teria sido Lilith, figura bastante conhecida da antiga tradição judaica. Lilith não se submeteu à dominação masculina. A sua forma de reivindicar igualdade foi a de recusar a forma de relação sexual com o homem por cima. Por isso, fugiu para o Mar Vermelho. Adão queixou -se com ao Criador, que enviou três anjos em busca da noiva Rebelde.

Os três anjos eram Sanvi, Sansavnvi e Samangelaf. Os emissários do Senhor tetaram em vão convencer a fujona. Ameaçaram afogá-la no mar. Lilith, porém, respondeu: "Deixem-me, não sabeis que não fui criada em vão e que é meu destino dizimar recém-nascidos; enquanto é um menino tenho poder sobe ele até o oitavo dia, se é menina até o vigésimo. No entanto, ela jurou aos anjos, em nome do Deus vivo, de que sempre que avistasse as figuras ou apenas o nomes dos mensageiros de Deus, deixaria a criança em paz. Também aceitou o fato de que diariamente iriam perecer cem de seus próprios filhos." (Gorion, :53). Lilith foi transformada em um demônio feminino, a rainha da noite, que se tornou a noiva de Samael, e o Senhor das forças do Mal.

Segundo uma velha tradição, Lilith seria uma figura sedutora, de longos cabelos, que voa à noite, como uma coruja, para atacar os homens que dormem sozinhos. As populações noturnas masculinas podem significar um ato de conúbio com a demônia, ca´paz de gerar filhos demônios para a mesma. As crianças recém-nascidos. Uma forma de protege as crianças contra a fúria da bela demônia é escrever na porta do quarto os nomes dos três anjos enviados pelo Senhor. Outra maneira é a de afixar no berço, três fitas, cada uma delas com o nomes dos três anjos. Segundo Unterman, na véspera do Shabat e da Lua Nova, quando uma criança sorri é porque Lilith está brincando com ela. Para protegê-la deve se bater três vezes de leve no nariz da criança, pronunciando uma fórmula de proteção contra Lilith. O mesmo Autor afirma que, na Idade Média, era considerado perigoso beber água nos solstícios e equinócios, período estes em que o sangue menstrual de Lilith pinga nos líquidos expostos. Finalmente, uma tradição judaica afirma que a lendária rainha de Sabá que teria visitado Salomão nada mais era do que Lilith. O sábio rei, contudo, descobriu o ardil ao levantar a saia da rainha e constatar que as suas pernas eram peludas. 


Segundo uma lenda judaica, após a expulsão do paraíso, Adão para se modificar ficou cento e trinta anos afastado de Eva. Uma ocasião que estava dormindo sozinho, Lilith o encontrou e deitou-se ao seu lado e dele concebeu um sem número de demônios. Os que se defrontavam com eles eram torturados e mortos (Gorion, :54).

A rebelião de Lilith contra Adão e o Criador levou à necessidade da criação de Eva, esta formada a partir de uma costela de Adão (Gênesis. 2,21). É possível, portanto, imaginar que um corte foi realizado entre o capítulo 1, versículo 28 e o capítulo 2, versículo 21. É provável que este corte tenha ocorrido, mesmo em época bastante remota, como no quarto século antes de Cristo, quando se supóe que o texto escrito tomou uma forma aproximada da atual (Leach, 1983:77). O próprio teor do capítulo 1, versículo 28, sustenta esta hipótese: "E Deus os abençoou, e Deus lhe disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra... "Como seri possível abençoar a amos e recomendar a multiplicação se Eva ainda não estava criada?

Roberto Sicuteri (1986:26) chama a atenção para um outro detalhe importante: após a criação de Eva extraída da costela de Adão este diz: "Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada varôa, porquanto do varão foi tomada" (Genêsis, 2,23). Para Sicuteri, esta agora soa como desta vez uma inequívoca referência a uma mulher anterior. 

Eva porém, à sua maneira, repetiria o gesto de rebelião de sua antecessora. Deus tinha permitido ao homem comer todas as frutas do jardim, com apenas uma exceção: "Mas da árvore da ciência do bem e do mal, d'ela não comerás; porque no dia que d'ela comeres certamente morrerás." (Genêsis, 2,17). É exatamente esta interdição que é rompida por Eva. A versão canônica é que a mulher assim procedeu tentada pela serpente, sob a alegação do que o consumo da fruta proibida a tornaria tão poderosa como Deus. Acreditando na pérfida serpente, Eva comeu do fruto proibido e convenceu seu companheiro a fazer o mesmo. A punição por este ato de desobediência original foi a perda da imortalidade, a partir de então os homens tornaram-se mortais. Existem outras interpretações para esta história. Os teólogos modernos acreditam que a serpente foi a forma tomada pelo demônio para tentar Eva. Existe também a crença de que Lilith teria se transformado em serpente para tentar Eva e se vingar de Adão. Uma terceira interpretação é a que faz parte de uma tradição judaica: "a serpente bíblica era um animal astucioso, que caminhava ereto sobre as duas pernas, falava e comia os mesmos alimentos que o homem. Quando viu como os anjos prestigiavam Adão, teve ciúme dele, e a visão do primeiro casal tendo relação sexual despertou na serpente o desejo por Eva. Por instigação de Satã ou Samael, ou, segundo algumas versõe, possuídas por ele, a serpente persuadiu Eva a comer o fruto proibido e seduziu-a. Como castigo, suas mãos e pernas foram cortadas e ela teve de se arrastar sobre o eu ventre, todo alimento que comia sabia a pó, e tornou-se eterna inimiga do homem (...) Quando teve relação sexual com Eva, injetou sua peçonha nela e em todos os seus descendentes. essa peçonha só foi removida do povo de Israel quando estavam no Monte Sinai e receberam o Torá." (Unterman, 1992:236).

Expulsos do paraíso, Adão e Eva tiveram, segundo a versão canônica, dois filhos: Caim e Abel (Gênesis, 4. 1 e 2). As causas do fratricídio cometido por Caim são bastante conhecids, por isso passamos diretamente para uma outra versão: "num paroxismo de ciúme pela não aceitação de sua oferenda e por uma irmã gêmea que Abel desposara (o grifo é nosso), Caim matou seu irmão." (Unterman, 1992:54). Chamamos a atenção para um elemento novo que surge neste momento, interessa-nos mais a versão de que Caim, de fato, não era filho de Adão, mas da serpente que tinha seduzido Eva. E mai, quando foi banido para o leste do Éden. Deus lhe atribuiu chifres, para afugentar os animais que lhe pudessem atacar. A sua punição consistia em perambular pela terra, sem descanso, sem que ninguém o pudesse matar. Contudo, foi morto por um seu descendente, Lamech que o confundiu com um selvagem. A versão atual não faz menção ao "patricídio" de Lamech, mas nos dá indício que neste ponto também agiram os editores bíblicos. Vejamos o que diz os versículos 23 e 24 do capítulo 8 do Gênesis: 23. "E disse Lamech as mulheres: Ada e Zilla, ouvi a minha voz; vós, mulheres de Lamech, escutai o meu dito; porque eu matei uma varão por minha ferida, e um mancebo por minha pisadura". 24. "Porque sete vezes Caim será castigado, mas Lamech setenta vezes sete." Por que este último versículo atribui uma maior punição a Lamech? A resposta nos é dada pelo versículo 15 do mesmo capítulo: "O Senhor porém disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse qualquer que o achasse." Este versículo não deixa dúvid sobre quem foi a vítima da flecha de Lamech, além disto refere-se a um sinal colocado por Deus em Caim, que pode ser os chifres mencionados na tradição judaica. 

O versículo 25 do capítulo 8, também, é bastante significativo: "E tornou a Adão a conhecer a sua mulher; e ela pariu um filho, e chamou o seu nome Seth; porque disse a ela Deus me deu outra semente em lugar de Abel; porquanto Caim o matou." Esta frase de Eva ficaria melhor na boca de dão (não teria sido que a proferiu?), porque Adão somente considera como a sua descendência a de Seth (desde que Abel não deixou descendentes). Contudo, os versículos 17 e 22 do capítulo 8 referem-se a grande descendência de Caim. Para se ter uma ideia de sua dimensão, basta registrar que Lamech era neto de seu Mehujael, bisneto de Caim; ou seja, cinco gerações o separava de seu maldito ancestral. Resta, então uma dúvida que nos permite formular duas hipóteses: a primeira Adão teria repudiado a linhagem de Caim em função do fratricídio; a segunda é que Adão não considerava a descendência de Caim, sabedor da infidelidade de Eva. 




Em seu artigo "O Gênesis enquanto um mito", Leach (19830 demonstrou as característica míticas das estórias bíblicas. Repetindo os argumentos desse Autor, podemos analisar o Velho Testamento como um mio porque existe uma comunidade de pessoas que acreditam no texto sagrado "quer correspondam aos fatos históricos ou não". Os disparates e contradições existentes no discurso bíblico reforçam a sua definição como mito, porquanto "a não racionalidade do mito é a sua verdadeira essência, pois a religião exige uma demonstração de fé que se faz suspendendo-se a dúvida crítica."

Utilizando-se da linguagem técnica da comunicação, Leach demonstra que um das característica do mito é o da redundância, ou seja, uma mesma mensagem deve ser repetida várias vezes para melhor atingir os receptores. Assim, no discurso canônico, o homem é criado duas vezes: (Gênesis 1,27) "E creou Deus o homem à sua imagem..." e (Gênesis 2,7) "E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra...". Além disso, existe ainda um outro momento da criação da humanidade a parti da descendência de Noé: (Gênesis 9,1): "E abençoou Deus a Noé e a seus filhos, e disse-lhes: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra." As reincidências das redundâncias visa a superação dos ruídos das interferências que surgem entre o transmissor e os receptores. Os adeptos da Bíblia acreditam na natureza divina do transmissor, mas a maioria deles ignora as interferências provocadas pelos chamados editores bíblicos. A Antropologia não está interessada na discussão do caráter divino do transmissor. Os antropólogos acreditam mesmo na existência de diversos transmissores que foram, no decorrer do tempo, os responsáveis pela criação do mito. Neste trabalho, enfatizamos os ruídos que se colocaram entre os emissores ancestrais e os receptores que continuam a existir. As distorções apontadas por Lévi-Strauss o invés de nos afugentarem serviam de estímulos para a análise que faremos a seguir. 



Do ponto de vista antropológico, o Gênesis é um mito de origem buscar explicar o surgimento do primeiro homem e como tal não difere muito de outros mitos, integrantes das diferentes csmologias existentes, principalmente em dois pontos fundamentais:

1) O mito não visa a explicação do surgimento de toda a humanidade - como depois foi sugerido pelos exegetas judaicos e cristãos - mas, apenas o surgimento de um povo específico, no caso os hebreus. Tal fato está confirmado pelo versículo 16 do capítulo 4: "E saiu Caim de diante da face do Senhor, e habitou na terra de Nod, da banda do oriente do Éden. "O versículo seguinte afirma que "Caim conheceu a sua mulher e ela concebeu, e pariu Enoch..." Há duas interpretações possíveis para estes dois versículos: a primeira é que o conheceu significa apenas ter relações sexuais e , portanto, Caim teria chegado ao leste do Éden já com uma companheira. Mas a interpretação mais plausível é que de fato tenha encontrado um outro povo. Isto é mais condizente com o estilo dos mitos de origens, marcados fortemente pelo etnocentrismo. 
2) O mito narra a história do pecado original. É portanto semelhante às narrativas que mostram que o homem perdeu a imortalidade em função de sua própria culpa. Uma escolha mal feita, um ato de desobediência (como no Gênesis) ou uma ofensa a um ser sobrenatural. Os Tupi Guarani seriam imortais se a primeira mulher não tivesse duvidado dos poderes de Mahíra. O texto bíblico relata a dupla desobediência da mulher: Lilith não atende a convocação do Senhor para voltar para Adão; Eva come do fruto proibido e convence Adão a fazer o mesmo. 

O pecado original transforma os seres puros, criado por Deus, em seres impuros. A mulher, a principal responsável pela queda, expressa a sua impureza através da própria biologia. Assim o luxo menstrual é considerado pelos hebreus como uma forma de poluição que exige rituais de purificaçõ para aqueles que são contaminados. Ao se relacionar sexualmente com a serpente, Eva foi contaminada pela terrível peçonha da mesma. Tal contaminação é transmitida a toda sua descendência tanto aos filhos de Seth como de Caim. Esta peçonha foi retirada do povo de Israel, no monte Sinai, quando Deus estabeleceu um novo pacto com os Hebreus (Êxodo, 34, 10-28), conclamando-os a uma forte endogamia. O casamento com outros povos possibilitaria uma nova contaminação com a peçonha de Eva. O etnocentrismo do cristianismo. Maria, mãe de Jesus, torna0se a mãe de toda humanidade para com a sua pureza livrá-la da contaminação original. O sacrifício de Cristo seria um novo pacto de Deus com os homens, mas desta vez uma aliança universal. 

Todos os mitos de origem defrontam-se com a questão do incesto. É comum o caso de um casal de gêmeos que dá origem à espécie humana. Nestes casos, o mito estabelece uma relação de inversão com as práticas sociais de seus adeptos. A relação sexual consanguíneo é permitida aos ancestrais, que vivem naquele tempo, mas se torna uma pratica abominável par os mortais comuns. O Gênesis não escapa desta característica. Mesmo se desprezarmos a pouco conhecida irmã gêmea de Abel, tão cobiçada por Caim, as práticas incestuosas aparecem no Gênesis, portanto tecnicamente irmãos, e carne da mesma carne, conforme proclamou Adão. Segundo, com Seth que gerou a Enos, provavelmente com a parceria de um mulher, filha de Adão. 

Em uma cultura fortemente marcada por oposições binárias, do ipo bem/mal, mulheres permitidas/mulheres proibidas etc., temos que concordar, mais uma vez com Leach que as personagens do Gênesis pertencem a uma terceira categoria de seres, os anômalos ou os mediadores, que são capazes de praticar atos proibidos ao restante da humanidade. 



Discordamos, portanto, de Leach quando estabelece que o consumo do fruto proibido levou o primeiro homem e a primeira mulher ao conhecimento da sexualidade, quando diz que "Adão e Eva comem o fruto proibido e tornam-se conscientes da diferença sexual". Baseamos a nossa discordância tanto na análise dos textos canônicos quanto os não canônicos. Quanto a estes últimos, lembramos que Lilith abandonou Adão porque queria ficar por cima no ato sexual; a serpente desejou Eva estimulada pela visão da mulher tendo relações sexuais com o primeiro homem. Quanto aos primeiros, recordamos que o versículo 28, do capítulo 1, apontando anteriormente neste trabalho como anterior à Eva, e conseqüentemente antes de sua desobediência, recomendava ao casal inicial "frutificai e multiplicai-vos e enchei  terra..." O próprio versículo 27, quando diz "macho e fêmea os criou", já sugere a possibilidade do intercurso sexual. Por outro lado não existe nenhuma indicação de relacionamento com a sexualidade nos trechos mais relacionados com a desobediência original como nos versículos 4 e 5 do capítulo 3: 4. "Então a serpente disse à mulher; Certamente não morrereis." 5. "Porque Deus sabe que no dia em que d'ele comerdes se abrirão aos vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal. "Foram, com certeza, editores bíblicos de m período mais recente, dominados por uma ética sexual do tipo que hoje chamamos judaico-cristã, que adaptaram o texto tornando-o mais compatível com uma moral sexual mais rígida e estabelecendo uma nova dicotomia de categorias do bem e do mal. Foram eles que consideraram a prática sexual como pecaminosa. 

A principal mensagem do conjunto de mitos produzidos por uma sociedade de pastores e guerreiros nômades, fortemente patriarcal e patrilinear como demonstram as genealogias do Gênesis, imbuída de uma ideologia machista, refere-se exatamente à questão da mulher vista como um ser extremamente perigoso, necessitando portanto ser fortemente controlada. Esta forma de perigo fica demonstrada, no mito, pelo comportamento das duas primeiras mulheres, as esposas de Adão, Lilith recusou ser dominada pelo homem. "Por que devo deitar embaixo de você? - pergunta ela - "Eu também sou feita do pó, e assim sendo somos iguais. E nem mesmo a tentativa de Adão de dominá-la pela força produz resultado: ela invoca o nome de Deus e foge para o mar Vermelho, uma região abundante em demônios lascivos, com os quais ela reproduz diariamente uma centena de lilim (filhos de Lilith). A sua rebelião a transforma definitivamente em um ser demoníaco, perpétuo inimigo dos homens e de suas crianças. É muito significativo que Lilith não ataque as mulheres, com a exceção apenas das noivas. Eva, denominada por Adão "a mãe de todos os seres viventes", e mais fácil de ser subjugada porque não foi feita com ele do pó, mas de uma parte dele, também demonstrou a sua capacidade de ser perigosa. Ao ser seduzida pela serpente, desobedeceu a ordem de Deus de não comer do fruto proibido e convenceu ao homem a fazer o mesmo ("Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore e comi) - Gênesis. 3.12), condenando toda humanidade a ser exilada do Éden Estruturalmente, Lilith e Eva cometeram  mesmo crime, o da desobediência ao Senhor e form punidas da mesma forma: Todos os dias, por toda a eternidade, Lilith, "a mãe dos demônios" tem que se conformar com a morte de 100 lilim; da mesma forma, Eva é a responsável pela morte de todos os seus descendentes que poderiam ser imortais se continuassem a viver no Paraíso. 


Concluindo, a nossa intenção neste trabalho foi uma reconstrução de um mito de origem de um grupo de pastores nômades que mais tarde foram identificados como Hebreus, pertencentes a uma mesma área cultural, cujos maiores expoentes foram as culturas Babilônica e Sumeriana. Muito dos mitemas encontrados nos mitos bíblico tem  sua origem nas versões mais antigas dos povos da Mesopotâmia. O processo de canonização do Torá (e conseqüêntemente da Bíblia) iniciou- se aproximadamente no ano 400 a.C., durante o governo de Ezra, um dos chamados editores bíblicos. Não pretendemos reconstituir aqui todas as modificações sofridas após o livro sagrado dos judeus ter sido apropriado pelo Cristianismo, apenas daremos uma idéia destas transformações indicando a quantidade de textos que foram considerados apócrifos pelos diferentes editores. 

Cerca do ano 100 a.C., os rabinos preocupados com a canonização do Torah consideraram como verdadeiros todos os textos que foram produzidos antes de 500 a.C., mantendo uma constante discussão sobre s demais. Este processo culminou entre a queda de Jerusalém (70 a.C.) e o no e 135, pelos componentes da chamada escola de Yavneh. A partir desta época nenhum livro podia ser acrescentado e rejeitado. Tal fato deixou de lado um considerável número de textos em hebreu ou aramaico, que foram então denominados os livros escondidos ou os apócrifos. Muitos destes textos form incorporados no Septuagint uma versão, um versão grega do Velho Testamento, produzida em 270 a.C. e, desta forma. é uma variante mais extensa que a Bíblia judaica. A tradição protestante é mais fiel ao texto Hebreu, enaqunto a católica está mais próxima do Septuagint. 


São considerados apócrifos nas Igrejas Protestantes e aceito pela Igreja Católica os livros de Tbias (escrito em Hebreu e Aramaico, 200 a.C.), Judith (escrito em Hebreu, 200 a.C.), A Sabedoria de Salomão (composto nos meios helenísticos, 100 a.C.) Baruch (100 a.C.), A Carta de Jeremias. Macabeus I e II (o primeiro escrito em Hebreu e o sengundo em Grego, ambos cerca de 200 a.C), Adições ao livro de Daniel (data desconhecida), Adições ao livro de Ester (provavelmente 100 a.C.) e A Sabedoria de Jesus Sirach (escrito em Hebreul 200 a.C.).

São Considerados apócrifos tantos nas Igrejas Protestantes como na Católica os livros de Macabeus III e IV (100.a.C.)), Ezra III e IV (200.a.C.) e a Prece de Manasseh (data incerta).

São considerados apócrifos pela Igreja Católica e pseudografados pela Igreja Protestantes os livros A Carta de Aristea (200.a.C.) Jubileus (escrito em Hebreus no fim do segundo século a.C.), O Testamento dos Doze Patriarcas (escrito em hebreu ou aramaico, entre o primeiro e o segundo século a.C.), Enoch I (165 a.C.), Salmos de Salomão (escrito em hebreu, cerca de 50 a.C.), A Assunção de Moisés (início da era cristã), A Ascensão de Isaias (idem) , O  Apocalipse de Baruch (50 a.C.), os Livros Sibilinos (inicio da era cristã) e o Documento de Damasco (200.a.C.).

Tal inventário mostra a quantidade de material que foi retirado das bíblias atuais e que provavelmente, em muitos casos, contém uma quantidade razoável de informações míticas à disposição dos estudiosos preocupados com uma análise antropológica da cosmologia judaica. De nossa parte, contentamos-nos em ter realizado uma análise que, seguindo os passos da efetuada por Leach, parece-nos mais abrangente e mais fiel às versões mais arcaicas do mito hebreu.

páginas 149 - 161
Revista de Antropologia V. 40 nº 1 -1997
Universidade de São Paulo - USP

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