Instinto Coletivo
Ética, Livro II, escólio da proposição 3, trad. de Joaquim Ferreira Gomes, p. 139
O vulgo entende por potência de Deus a livre vontade de Deus e o seu poder sobre todas as coisas que existem, as quais, por esse fato, são comumente consideradas e de tudo reduzir ao nada. Vai-se mais longe, e compara-se muitas vezes, o poder de Deus ao dos reis. Mas nós já refutamos isso (...) e demonstramos que Deus age em virtude da mesma necessidade pela qual se compreende a si mesmo, isto é, que do mesmo modo que se segue a necessidade da natureza de Deus se compreenda a si mesmo (o que todos admitem unanimemente), segue-se igualmente, com a mesma necessidade, que Deus produza coisas infinitas, numa infinidade de modos. Além de Deus; por conseqüência, é-nos tão impossível conceber que Deus não age como conceber que Deus não existe. Além disso, se eu quisesse prosseguir, poderia provar aqui que essa potência, que vulgo atribui a Deus, não é somente uma potência humana (o que mostra que o vulgo imagina Deus como um homem, ou semelhante a um homem), mas que implica mesmo impotência. Não quero, todavia, retomar tantas vezes o mesmo assunto. (...) Com efeito, ninguém seriamente cuidado em não confundir a potência de Deus com a potência humana ou com direito dos reis.
As Paixões
A ORIGEM E A NATUREZA DAS PAIXÕES: OS AFETOS SÃO NATURAIS AOS SERES HUMANOS
Ética, prefácio do Livro III, trad. de Lívio Xavire, p. 87
Aqueles que escreveram sobre as Paixões e a conduta da vida humano parecem, na sua maioria, tratar não de coisas naturais que decorrem das leis comuns da Natureza, mas de coisas que estão fora da Natureza. Na verdade dir-se-ia concebem o homem na Natureza como um império dentro de um império. Supõem, com efeito que o homem perturba a ordem da Natureza mais que a segue, que tem sobre suas próprias ações um poder absoluto e tira apenas dele mesmo sua determinação. Procuram poi a causa da impotência e da inconstância humanas não na potência comum da Natureza, mas não sei qual vício da natureza humana e, por essa razão, choram por causa dela, riem, desprezam-na, ou as mais das vezes a detestam; quem sabe mais eloquentemente ou mais sutilmente censura a impotência da alma humana é tido por divino. Não têm faltado decerto homens eminentes (a cujo labor e indústria confessamos dever muito) para escrever sobre a reta conduta da vida muitas coisas excelentes e dar aos mortais conselhos cheio de prudência; mas, quanto a determinar a natureza e as forças das Paixões e o que pode a alma, por seu lado, para as governar, ninguém que eu saiba ainda o fez. Na verdade, o célebre Descartes, se bem que tenha admitido o poder absoluto da alma sobre suas ações, tentou, ao que sei, explicar as afecções humanas pelas suas causas primeiras e mostrar ao mesmo tempo por que vias a Alma pode ter sobre as Paixões um império absoluto; mas, na minha opinião, não mostrou ele senão a penetração do seu grande espírito, como estabelecerei em lugar próprio. Por enquanto, quero referir-me àqueles que preferem detestar ou ridicularizar as Paixões e as ações dos homens, a conhecê-las. A eles decerto parecerá surpreendente que eu empreenda tratar dos vícios dos homens e da sua inépcia à maneira dos geômetras e que queira demonstrar por um raciocínio rigoroso o que não cessam de proclamar contrário à razão, vão, absurdo e digno de horror. Mas eis aqui a minha razão. Nada acontece na Natureza que possa ser atribuído a um vício existente nela, ela e sempre a mesma, com efeito; sua virtude e poder de ação são os mesmos em toda parte, isto é, as leis e regras da Natureza, conforme as quais tudo acontece e passa de uma forma a outra, são, em toda parte e sempre, as mesmas; por conseqüência, o único meio de conhecer a natureza das coisas, sejam elas quais forem, deve ser também o mesmo: isto é, sempre pelas leis regras universais da Natureza. As Paixões, pois, do ódio, da cólera, da inveja, etc., consideradas em si mesma, decorrem da mesma necessidade e da mesma virtude da Natureza que as outras coisas singulares; por conseqüência admitem certas causas, por onde são claramente conhecidas, e têm certas propriedades tão dignas de conhecimento como as propriedades de uma outra coisa cuja consideração apenas nos causa prazer. Tratarei pois da natureza das Paixões e de suas forças, do poder da Alma sobre elas, segundo o mesmo método com que nas partes precedentes tratei de Deus e da Alma, e considerarei as ações e apetites humanos, como se se tratasse de linhas, superfícies e de sólidos.
PERFEIÇÃO, IMPERFEIÇÃO, BOM E MAU: MODOS DE IMAGINAR E DE PENSAR
Ética, prefácio do Livro IV, trad. de Lívio Xavier, p. 139-140.
Quem resolveu fazer uma coisa e a levou a termo dirá que a própria coisa é perfeita, e não só ele, mas também todo aquele que tiver conhecido ou pretendido conhecer o pensamento do autor daquelas coisas e a sua intenção. Se, por exemplo, se vir uma obra (que suponho inacabada) e se souber que a intenção do autor é edificar uma casa, é imperfeita, e perfeita, ao contrário, logo que vir que ela foi levada ao termo que o seu autor tinha resolvido fazê-la alcançar. Mas, se se vir uma obra à qual não se viu amais coisa alguma semelhante, e se ignorar o pensamento do artífice, não se poderá saber certamente se ela é perfeita, ou imperfeita. Tal parece a ser a primeira significação destes vocábulos. Quando, todavia, os homens começaram a formar ideias gerais e a representar no pensamento modelo de casas, edifícios, torres, etc..., e também a preferir certos modelos a outros, aconteceu que cada qual chamou perfeito o que via concordar com a ideia geral formada por ele das coisas da mesma espécie, e imperfeição ao contrário, aquilo que via ser menos conforme ao modelo concebido por ele, ainda que o artífice o tivesse executado inteiramente segundo o seu próprio desígnio. Parece que não há outra razão para que se chamem perfeitas ou imperfeitas as coisas da Natureza, isto é, não feitas pela mão do homem, os homens com efeito, se acostumaram a formar, tanto das coisas naturais, com dos produtos do seu artifício, ideias gerais que têm a estas por modelos; e creem que a natureza as toma em consideração (segundo eles, esta só age com um fim) e as propõem que a si mesmos como modelos. Quando, pois, veem fazer-se, na Natureza, alguma coisa pouco conforme ao modelo concebido por eles mesmos, para uma coisa da mesma espécie, creem que a própria Natureza falhou ou pecou e supõem que ela deixou imperfeita a sua obra. Assim, vemos que os homens chamam, de ordinário, perfeitas ou imperfeitas as coisas naturais mais em virtude de um preconceito do que pelo verdadeiro conhecimento destas coisas. Mostramos (...) que a Natureza não age com um fim; este Ser eterno e infinito que chamamos Deus ou Natureza age com a mesma necessidade com que existe. Pois a mesma necessidade da Natureza pela qual ele existe é também, como fizemos ver (...), a necessidade pela qual ele age. Portanto, a razão ou causa por que Deus ou a Natureza age ou existe é uma e sempre a mesma. Não existindo para nenhum fim ele não age, pois, também por nenhum; e como sua existência, sua ação também não tem princípios nem fim.O Que se chama causa final, aliás, não é senão o desejo humano, na medida em que é considerado como princípio ou causa primitiva de uma coisa. Quando, por exemplo, dizemos que a habitação foi a causa final de tal ou qual casa, certamente não entendemos nada mais senão que um homem, tendo imaginado as vantagens da vida doméstica, teve desejo de construir uma casa. A habitação, pois, enquanto considerada como causa final, não é senão um desejo singular, e este desejo é realmente uma causa eficiente, considerada primeira, porque os homens ignoram comumente as causas dos seus desejos. Com efeito, são eles como já disse muitas vezes, conscientes de suas ações e desejos, mais ignorantes das causas pelas quais são determinados a desejar alguma coisa (...) Portanto, a perfeição e a imperfeição não são, na realidade, senão modos de pensar, quero dizer, noções que nos acostumamos a formar porque comparamos entre si indivíduos da mesma espécie ou do mesmo gênero; eis por que (...) entendo por perfeição e realidade a mesma coisa. Temos o costume, na verdade, de reduzir todos os indivíduos da Natureza a um único gênero, chamado mais geral, ou, por outra à noção de ser que pertence absolutamente a todos os indivíduos da natureza a este gênero e que os comparamos entre si, e na medida em que achamos que uns têm maior entidade ou realidade que os outros, dizemos que são mais perfeitos uns que os outros, e enquanto lhes atribuímos alguma coisa como um limite, um fim, uma impotência, que envolva uma negação, nós o chamamos imperfeitos porque não afetam nossa alma semelhantemente àqueles que chamamos perfeitos, e não porque lhes falte alguma coisa que lhes pertença ou porque a Natureza tenha pecado. Nada, com efeito, pertence à natureza de uma coisa, senão o que decorre da necessidade da natureza de uma causa eficiente, e tudo que se segue da necessidade da natureza de uma causa eficiente acontece necessariamente.
Quanto ao bom ao mau, não indicam eles também nada de positivo nas coisas, consideradas, pelo menos, em si mesmas, e não senão modos de pensar ou noções que formamos porque comparamos as coisas entre si. Uma só coisa pode ser ao mesmo tempo boa e má, e também indiferente;
Por exemplo, a Música é boa para o melancólico, má para o aflito; para surdo não é boa nem má. Se em que seja assim, contudo é preciso conservar estes vocábulos. Desejando, com efeito, formar uma ideia do homem que seja como um modelo da natureza humana colocado diante de nossos olhos, nos será de utilidade, conservar estes vocábulos no sentido que disse. No que vai seguir, pois, entenderei por bom o que sabemos com certeza, ser um meio de nos aproximar, cada vez mais, do modelo da natureza humana que nos propomos. Por mau, ao contrário, aquilo que sabemos, com certeza, impedir que reproduzamos este modelo. (...)
RAZÃO E LIBERDADE: A ALMA INTERPRETA SEUS AFETOS E OS ENCADEIA INTERIORMENTE
Ética, Livro V, proposição 10, trad. de Lívio Xavier, p.197-198
Proposição
Quando não somos dominados por paixões que são contrárias à nossa natureza, temo o poder de ordenar e concatenar as afecções do corpo segundo a ordem do intelecto. (Homo Sapiens-sapiens)
Demonstração
As paixões que são contrárias à nossa natureza, (...) são más na medida em que impedem a alma de conhecer, (...) Enquanto, pois não somos, dominados por paixões que são contrárias à nossa naturezam a potência da alma, pela qual ela se esforça por conhecer (...), não é impedida, e tem portanto, até então, o poder de formar ideias claras e distintas e de deduzi-las umas das outras (...) e, conseqüentemente (...), até então, temos o poder de ordenar e concatenar as afecções do corpo segundo a ordem do entendimento.
Escólio
Por este poder de ordenar e concatenar corretamente as afecções do corpo, podemos fazer com que nao sejamos facilmente afetados, de paixões más. Com efeito (...), requer-se maior força para reprimir paixões ordenadas e concatenadas de acordo com a ordem do entendimento, do que se elas incertas e vagas. O melhor, pois, que temos a fazer, enquanto não temos um conhecimento perfeito das nossas paixões, é conceber uma conduta reta de vida, ou por, princípios certos de vida, imprimi-los na memória e aplicá-los continuamente às coisas particulares que se encontram freqüentemente na vida, para que a nossa imaginação seja largamente influenciada por eles e que nos sejam eles sempre presentes. Pusemos por exemplo entre as regras da vida (...) que o Ódio deve ser vencido pelo amor e pela Generosidade, e não compensado por um Ódio recíproco. Para ter esse preceito da Razão sempre presente quando for útil, deve-se pensar muitas vezes nas ofensas que se fazem os homens uns aos outros, e de que modo e por que meio são repelidas o melhor possível pela Generosidade; deste princípio, que nos será sempre presente (...) quando nos ofenderem. Se tivermos também presente a consideração de nosso interesse verdadeiro e do bem que produz uma amizade mútua e uma sociedade comum, e, além disso, se não perdemos de vista que o supremo contentamento interior nasce da conduta reta na vida (...), e que os homens, como os outros seres, agem por uma necessidade da Natureza, ofensa então, isto é, o Ódio que nasce dela habitualmente, ocupará uma parte mínima da imaginação e será facilmente superada; ou se a Ira que nasce ordinariamente das ofensas mais graves não é superada tão facilmente, o será, entretanto, se bem que não sem flutuação da alma, m um espaço de tempo muito menor do que no caso de não termos de antemão meditado nestas coisas (...). Do mesmo modo, deve-se pensar na firmeza da alma para afastar o Temor; deve-se enumerar e imaginar muitas vezes os perigos comuns da vida e como se pode evitá-los e superá-los pela presença de espírito e força de ânimo. Mas deve-se notar que, ordenando nosso pensamento e imagens, é preciso sempre atender ao que (...) há de bom em toda coisa, a fim de que sejamos assim sempre determinados a agir por uma paixão de Alegria. Se, por exemplo, alguém vê que gosta muito da Glória, que pensa no bom uso que dela pode fazer e no fim em virtude do qual se deve procurá-la, e assim como nos meios de adquiri-las, mas não no seu mau uso ou em sua vaidade própria e na inconstância dos homens ou em outras coisas desta espécie, nas quais ninguém pesa sem desgosto; por tais pensamentos, com efeito, os mais ambiciosos se deixam afligir em alto grau quando desesperam de alcançar as honras que ambicionam, e que querem parecer ponderados quando na verdade espumam de Ira. É certo, pois que são desejosos de Glória aqules que mais clamam a respeito do abuso dela da vaidade do mundo. Isto, aliás, não é próprio dos ambiciosos, mas é comum a todos aqueles a quem é contrária a fortuna e que são impotentes de ânimo. Quando é pobre, com efeito, o avaro não cessa de falar do abudo do dinheiro e dos vícios dos ricos. O que não tem outro efeito senão o de se afligir a si próprio e mostrar aos outros que leva a mal não somente a própria pobreza mas a riqueza de outrem. Da mesma maneira ainda, aqueles que foram deixados por suas amantes só pensam na inconstância das mulheres e na sua falsidade e outros defeitos femininos bem decantados; e tudo isso é esquecido se as amantes os recebem de novo. Portanto, quem cuida de governar as suas paixões e seus apetites unicamente pelo amor da Liberdade se esforçará, tanto quanto possa, por conhecer as virtudes e suas causas, e por encher o ânimo daquela felicidade que nasce do conhecimento verdadeiro das paixões; não, de modo algum, por considerar os vícios dos homens nem por imprecar contra eles e nem se comprazer com uma falsa aparência de liberdade. E quem observa diligentemente esta regra (o que não é difícil) e a exercitar certamente poderá em breve espaço e tempo dirigir suas ações segundo o que dita nossa Razão. (Segundo o império das Razões)
Ética, Livro V, escólio da proposição 41, trad de Lívio Xavier, p. 211-212.
Parece que o vulgo está persuadido de coisa diferente. A maioria dos homens, com efeito, parece crer que é livre na medida em que é permitido aos homens obedecerem ao apetite sensual, e que eles renunciam à sua autonomia enquanto são obrigados a viver segundo os preceitos da lei divina. Crêem, assim que a Moral (moralidade) e a Religião e, em absoluto, tudo que se relaciona à fortaleza da alma são fardos de que esperam ser desonerados depois da morte para receber o preço da servidão, isto é, da Moral e da Religião; e não só esta esperança como também, e principalmente, o temor de serem punidos por duros suplícios depois da morte os induz a viver segundo as prescrições da lei divina tanto quanto o permitem a sua pequenez e impotência. E se os homens não tivessem esta esperança e este temor, se cressem, ao contrário, que as almas perecem com o corpo e que os infelizes, sobrecarregados com o fardo da Moral, não têm diante de si outra vida, voltariam ao seu natural e quereriam tudo governar segundo o seu apetite sensual e obedecer mais à fortuna do que a si mesmos. O que não me parece menos absurdo do que alguém, porque não acreditasse poder nutrir eternamente seu corpo com bons alimentos, preferisse saturar-se de venenos e substâncias mortíferas; ou porque supusesse que a alma não é eterna o mortal, preferisse ser louco e viver sem Razão; absurdos tais que não merecem quase ser notados.
A FELICIDADE NÃO É O PRÊMIO DA VIRTUDE, MAS A PRÓPRIA VIRTUDE
Ética, Livro V, proposição 42, trad. de Antônio Simões, p. 300-301
Proposição
A felicidade não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude; e não gozamos dela por refreamos as paixões, mas ao contrário, gozamos dela por podermos refrear as paixões.
Demsntração
A felicidade consiste no amor para com Deus (...), amor esse que nasce do terceiro gênero de conhecimento (...); e por conseguinte, este amor, [sendo uma ação e não uma paixão, deve ser referido à alma enquanto é ativa e, por conseguinte] (na medida em que age deve ser referido à alma; e, por conseqüência), e a própria virtude. O que era a primeira coisa que havia que demonstrar. Depois, quanto mais a alma goza deste amor divino, ou seja, da felicidade, tem poder de refrear as paixões. E como o poder do homem para refrear as afecções consiste só na sua inteligência, ninguém, por conseqüência, goza da felicidade por refrear as afecções, mas, pelo contrário, o poder de refrear as paixões nasce da própria felicidade.
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